domingo, 28 de setembro de 2014


O QUE É MORAL?

 Numa breve definição de moral, podemos dizer que se trata do conjunto de valores, de normas e de noções do que é certo ou errado, proibido e permitido, dentro de uma determinada sociedade, de uma cultura. Como sabemos, as práticas positivas de um código moral são importantes para que possamos viver em sociedade, fato que fortalece cada vez mais a coesão dos laços que garantem a solidariedade social. Do contrário, teríamos uma situação de caos, de luta de todos contra todos para o atendimento de nossas vontades. Assim, moral tem a ver com os valores que regem a ação humana enquanto inserida na convivência social, tendo assim um caráter normativo. A moral diz respeito a uma consciência coletiva e a valores que são construídos por convenções, as quais são formuladas por uma consciência social, o que equivale dizer que são regras sancionadas pela sociedade, pelo grupo. Segundo Émile Durkheim, um dos pensadores responsáveis pela origem da Sociologia no final do século XIX, a consciência social é fruto da coletividade, da soma e inter-relação das várias consciências individuais. Dessa forma, as mais diferentes expressões culturais possuem diferentes sistemas morais para organização da vida em sociedade. Prova disso está nas diferenças existentes entre os aspectos da cultura ocidental e oriental, em linhas gerais. Basta avaliarmos o papel social assumido pelas mulheres quando comparamos brasileiras e afegãs, assim como aquele assumido pelos anciãos nas mais diferentes sociedades, o gosto ou desinteresse pela política. Devemos sempre ter em mente que a moral, por ser fruto da consciência coletiva de uma determinada sociedade e cultura, pode variar através da dinâmica dos tempos. Ao partirmos então da ideia de que a moral é construída culturalmente, algumas “visões de mundo” ganham status de verdade entre os grupos sociais e, por isso, muitas vezes são “naturalizadas”. Essa naturalização de uma visão cultural é o que dificulta conseguirmos distinguir entre juízo de fato (análise imparcial) e de valor (fruto da subjetividade), o que pode ser uma armadilha que nos leva ao desenvolvimento de preconceitos em relação ao que nos é estranho e diferente. Considerar o outro ou o próximo é um aspecto fundamental à moralidade. Dessa forma, uma preocupação constante no debate sobre ética e moral se dá no sentido de evitar a violência em todas as suas possíveis expressões (física ou psíquica), bem como o caos social. Os valores éticos (ou morais) se oferecem, portanto, como expressão e garantia de nossa condição de seres humanos ou de sujeitos racionais e agentes livres, proibindo moralmente a violência e favorecendo a coesão social, isto é, a “ligação” entre as pessoas em sociedade. Porém, considerando-se que o código moral é constituído pela cultura, a violência não é vista da mesma forma por todas as culturas. Numa cultura, ao definir o que é mau ou violento, automaticamente defini-se o que é bom. Logo, a noção de violação, profanação e discriminação variam de uma cultura para outra. Contudo, em todas se tem a noção do que é a violência. Assim, tanto os valores como a ideia de virtude são fundamentais à vida ética e, dessa forma, evitam a violência, o ato imoral ou antiético. Ser virtuoso, em linhas gerais, significa desejar e saber colocar em prática ações éticas, isto é, moralmente louváveis. A noção de bem e mal ou bom e mau é fundamental para que calculemos uma forma de fugir do sofrimento, da dor, alcançando a felicidade de forma virtuosa. Contudo, é importante lembrar que fins éticos requerem meios éticos, o que nos faz deduzir que a famosa expressão “todos os fins justificam os meios” não é válida quando se busca ser virtuoso. Se em nosso código moral consideramos o roubo como algo imoral, roubar seria assim um meio injustificável para se alcançar qualquer coisa, ainda que isso fosse feito em nome de algum valor moral. A simples existência da moral não significa a presença explícita de uma ética, entendida como filosofia moral, isto é, uma reflexão que discuta, problematize e interprete o significado dos valores morais. Ao contrário disso, as sociedades tendem a naturalizar seus valores morais ao longo das gerações, isto é, ocorre uma aceitação generalizada.

 

INVERSÃO DA REALIDADE

INVERSÃO DA REALIDADE (IDEOLOGIA)
 A ideologia mostra uma realidade invertida, ou seja, o que seria a origem da realidade é posto como produto e vice-versa; o que é efeito passa a ser considerado causa, o que é determinado é tido como determinante. Por exemplo, a ideologia afirma que existe desigualdade social porque existem diferenças individuais (a desigualdade natural seria a causa da desigualdade social). Ora, a sociedade é na verdade resultado da práxis, e as desigualdades sociais estabelecidas pela divisão social do trabalho e pelas relações de produção é que são causas das desigualdades individuais.
Com isso não desconsideramos as diferenças que de fato existem entre os indivíduos, como diversos níveis de interesse, inteligência, aptidão. Mas, grosso modo, na ideologia a atividade a que cada um se submete aparece como decorrente da competência e não como resultado da divisão de classes.
Assim, se o filho de um operário não melhora o padrão de vida, isto é explicado como resultado da sua incompetência ou da falta de força de vontade ou disciplina de trabalho, quando na realidade ele joga um “jogo de cartas marcadas”, e suas chances de melhorar não dependem dele, mas da classe que detém os meios de produção.
Outra inversão própria da ideologia é a maneira pela qual são estabelecidas as relações entre teoria e prática, colocando a teoria como superior à prática, porque a antecede e “ilumina”. As idéias tornam-se autônomas (independentes) e são consideradas causa da ação humana (quando na realidade isso é ao contrário).
A divisão hierárquica entre o pensar e o agir se encontra também na divisão da sociedade, em que um segmento, uma parte da sociedade se dedica ao trabalho intelectual e outra parte (a grande maioria), realiza e se dedica ao trabalho manual. Sob esse esquema, uma classe “sabe pensar”, enquanto a outra parece que “não sabe pensar” e só executa tarefas. Portanto, uma pequena parcela da sociedade decide, manda, porque sabe, e a outra grande parcela da população apenas obedece, porque não sabe (será?).

DISCURSO IDEOLÓGICO E NÃO-IDEOLÓGICO (contra-ideológico)

O discurso contra-ideológico tenta desvendar os processos reais e históricos dos quais se origina a dominação de uma classe social sobre outra, enquanto a ideologia visa exatamente o contrário, ou seja, a dissimulação (ocultamento) dessa diferença ou a justificação dela.
A teoria estabelece uma relação dialética (lógica) com a prática, ou seja, uma relação de reciprocidade e simultaneidade, e não hierárquica. Explicando melhor: a práxis é justamente a relação indissolúvel teoria-prática, de modo que não há agir humano que não tenha sido antecedido por um projeto (teoria), da mesma forma que a teoria não é algo que se produza separadamente da prática, pois seu fundamento é a própria prática (realidade). O ser humano conhece as coisas na medida em que as produzem daí toda teoria se tornar lacunar (obscura ou oculta), sem o “vaivém” entre o fato e o pensado, entre o fazer e o pensar.
O discurso ideológico impede que o oprimido tenha uma visão própria do mundo, da realidade em que vive, porque lhe “impõe” (direta ou indiretamente) os valores da classe dominante, tornados universais. Além disso, “naturaliza” as ações humanas, explicando-as como decorrentes da “ordem natural das coisas” e não como o resultado da injusta repartição dos bens (acumulados pelo processo de produção histórica ou pela dinâmica social e econômica).

 

 

IDEOLOGIA - 3°ANO


Ideologia
Em princípio, a ideologia pode ser definida como uma forma de mascarar ou ocultar as contradições sociais e a dominação, invertendo o modo de processar o pensamento sobre algumas realidades.
Durante a história da Filosofia, muitos foram os autores que trabalharam com a noção de Ideia como sendo a base do pensamento e do conhecimento. Assim, Platão pensava, como Parmênides, que a ideia era o ser em si, a coisa mesma que mantém identidade consigo mesma, não muda, não se altera e permanece no tempo como sendo sempre a mesma. Mais tarde, já na Renascença, Descartes compreendeu as ideias como fundamento inteligível que era a base de toda cognoscibilidade. Já Kant entendia por ideia tudo aquilo que a Razão poderia pensar, mas jamais conhecer, como Deus, Alma e Mundo. Hegel pensava a ideia como o infinito (desenvolve-se interiormente em um processo dialético; a ideia é o sistema dos conceitos puros, que representam os esquemas do mundo natural e do espiritual). No entanto, para Karl Marx, ideias são valores que os homens criam segundo as suas condições materiais de existência. E esses valores são criados com um fim bem específico, que não é o de explicar a realidade, mas manter o status da propriedade privada e dos donos dos meios de produção. Daí deriva a noção de Ideologia.
Segundo essa forma de pensar, a realidade é constituída por uma luta de classes, causada pela divisão social do trabalho. As classes em conflito são as dos proprietários dos meios de produção e dos proletários, desprovidos de propriedade. Assim, para amenizar o conflito e manter o controle sobre a classe dominada, a classe dominante cria instâncias psicológicas, valores e ideias que procuram manter o seu objetivo. O capital, oriundo da propriedade privada, necessita de mão de obra para continuar existindo, logo, os discursos são moldados segundo a visão daqueles que percebem a necessidade de perpetuar o esquema de dominação. A ideologia é uma forma de mascarar ou ocultar as contradições sociais e a dominação, invertendo o modo de processar o pensamento sobre algumas realidades. Por exemplo, tem-se no senso comum a crença de que a mulher é o sexo frágil, assim se estabelece que sua estrutura física é mais sensitiva, intuitiva, do que a do homem e que portanto ela foi feita para a vida doméstica, os cuidados com o marido e os filhos. É um modo de explicar a feminilidade pela função social. Ora, tal discurso foi elaborado em época em que os homens em guerra precisam de filhos para suprir o pai, princípio de autoridade, bem como de mão de obra, como dito acima. Assim, a sexualidade é explicada a partir de uma finalidade historicamente determinada, por condições sociais bem localizadas no tempo e no espaço. Outro exemplo é a noção de liberdade e cidadania quando se concede o direito ao voto a todos os habitantes. Ora, liberdade implica em responsabilidade, fiscalização, compromisso político, constante observância das regras sociais e não apenas o direito de sair bonito na boca de urna. Ocorre algo semelhante quando se confunde liberdade com consumo (basta ver as propagandas na TV em que a noção de liberdade está atrelada ao fato de se comprar um produto que irá proporcionar essa liberdade). E uma série de outras questões (homossexualismo como doença, virgindade e casamento como valores que asseguram a transmissão da propriedade, etc.).
A ideologia é, portanto, uma forma de produção do imaginário social que corresponde aos anseios da classe dominante como meio mais eficaz de controle social e de amenizar os conflitos de classe, seja invertendo a noção de causa e efeito, seja silenciando questões que por isso mesmo impedem a tomada de consciência do trabalhador de sua condição histórica, “formando ideias falsas sobre si mesmo, sobre o que é ou o que deveria ser”.
(Por João Francisco P. Cabral/ Colaborador Brasil Escola - Graduado em Filosofia pela Universidade Federal de Uberlândia - UFU
Mestrando em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP
)
Como nasce a ideologia? (Uma estória para começar...): Numa certa tribo primitiva da Austrália, o ritual de passagem da infância para a vida adulta era cercado de crueldades, para provar a força, resistência e coragem dos jovens. Entre outras coisas, o jovem era fechado numa cabana, junto a um enxame de furiosas abelhas. O jovem deveria suportar todas as ferroadas sem soltar um ai. Depois ele deveria enfrentar feras no mato com instrumentos precários de autodefesa... Enfim, somente após um ritual de atrocidades é que ele poderia ser considerado membro adulto da tribo, com todos os privilégios reservados apenas aos guerreiros. Só os filhos dos chefes religiosos da tribo, que presidiam tais rituais, é que estavam isentos dessas práticas, porque só pelo fato de serem de descendência sagrada, eles já partilhavam da força dos deuses, o que os habilitava para posições privilegiadas. Foram os próprios deuses que, no princípio, assim estabeleceram as coisas! Nem é preciso dizer, que num passado muito distante, foram os religiosos que criaram e regulamentaram os rituais de passagem.
A ideologia é um conhecimento deformado e falseado da realidade que beneficia um grupo em detrimento de outro. Quem tem mais poder na sociedade, tem mais possibilidade de impor sua ideologia. Porque tem um pensamento mais elaborado e tem à sua disposição melhores meios para difundi-la. Os membros sagrados da tribo, devido sua posição privilegiada tinham maiores condições de impor sua cosmovisão a todo o grupo. Afinal, seu papel é altamente legitimado pela crença generalizada no seu poder sobrenatural. O fenômeno ideológico é um produto necessário do fenômeno da desigualdade social. A desigualdade é um fenômeno de poder e esse poder precisa legitimar-se. Precisam, portanto, justificar a necessidade da permanência da realidade como ela é, mantendo um quadro de idéias para convencer os outros disso.
A ideologia é a justificação das posições sociais. Nesse sentido, a ideologia conta com a participação e colaboração da filosofia, da literatura, das ciências, do direito etc. A realidade é transformada em mito e o dominado crê no mito. Conscientizar é desmitificar. 
A ideologia usa a ciência: há uma “atitude ideológica”, quando um cientista, um jurista ou um meio de comunicação são utilizados para falsificar a realidade. Nesse sentido, nem a ciência nem o direito são neutros. É impossível existir neutralidade em questões sociais.
No século XVII, os “cientistas” da Igreja tinham que acreditar e ensinar que a Terra era o Centro do Universo (teoria geocêntrica), pois assim faziam supor as Sagradas Escrituras, interpretadas pelos Santos Padres e pela Hierarquia da Igreja. Mesmo tendo apontado o telescópio para os céus e comprovado que o Sol era o centro do nosso sistema, Galileu foi obrigado a abjurar, em 1633, para não ser queimado vivo, como acontecera com Giordano Bruno, em 1600. Galileu ficou em prisão domiciliar até o final da vida. Só em 1992 a Igreja reconheceu publicamente que Galileu estava certo. Principalmente em Estados Totalitários, a ciência é muito usada para fins de justificação do regime. Por isso há controle e censura à produção científica. Hitler, por exemplo, queria provar, cientificamente, a superioridade da raça ariana sobre todas as outras raças. Faziam-se experiências, inclusive com seres humanos. Uma ditadura pode usar “explicações científicas” para provar a necessidade e a oportunidade de se construir uma Usina Nuclear em Angra dos Reis, ou uma Rodovia Transamazônica. Recorrer à ciência, às estatísticas, dá uma maior importância, uma aparência de certeza da verdade, ao fato em discussão. Até os dominados "defendem" a ideologia dominante:
Exemplos: - Foi Deus quem quis assim. Quando ele quiser, ele manda chuva para nós. Não podemos reclamar, não.  Uma pobre mulher nordestina dizia isso em junho de 2001.
- Minha senhora, não foi Deus, não! O dinheiro que já foi enviado para a SUDENE daria para ter inundado o Sertão. O Sertão poderia ter virado mar... Grande parte da culpa é dos corruptos que ficam com nosso suado dinheirinho... Que, juntado, dá um dinheirão!
Para pensar: É negra, mas é limpinha! É negro, de alma branca! É pobre, mas honesto!
Mora na favela, mas não é bandido! É homossexual, mas é gente boa!É loura, mas é inteligente
É sem-terra, mas não é baderneiro!     (http://www.brasilescola.com/filosofia/ideologia.htm)
Por Gabriella Porto: Uma ideologia  é um conjunto de idéias conscientes e inconscientes que constituem os objetivos primordiais do indivíduo, expectativas e ações. Uma ideologia é uma visão abrangente, uma maneira de olhar as coisas como em várias tendências filosóficas, ou um conjunto de idéias propostas pela classe dominante de uma sociedade para todos os membros da mesma (o chamado produto da socialização). As ideologias são sistemas de pensamento abstratos aplicados a questões públicas, tornando este conceito central para a análise política. Implicitamente, qualquer tendência política ou econômica implica uma ideologia, sendo ela uma proposta explícita de pensamento ou não. Talvez a fonte mais acessível para o significado da ideologia é a obra de Hippolyte Taine sobre o Antigo Regime (o primeiro volume de "Origens da França Contemporânea"). Ele descreve a ideologia como o método socrático de ensino de filosofia, mas sem estender o vocabulário para além daquele que o leitor normal já possui, sem os exemplos de observação que a ciência prática necessitaria. Aos poucos, o termo perdeu essa sua grande concepção, se tornando um termo neutro na análise de diferentes opiniões políticas e pontos de vista de grupos sociais. Enquanto Karl Marx fixa o termo dentro da luta de classes e da opressão, outros acreditavam que ela é uma parte necessária do funcionamento institucional e de integração social. (Fontes: http://www.suapesquisa.com/o_que_e/ideologia.htm e http://www.significados.com.br/ideologia/)

sábado, 12 de abril de 2014

Marilena Chauí - Café Filosófico (2 /09/ 2010) O toque de Merleau-Ponty/O Corpo Humano/ Transcrição de Leeward Wang
Merleau Ponty escreveu: Nós não somos uma consciência cognitiva pura. Nós somos uma consciência encarnada num corpo. O nosso Corpo não é um objeto tal como descrito pelas ciências. Mas é um corpo humano, isto é, habitado e animado por uma consciência. Nós não somos pensamento puro, porque nós somos um corpo. Mas nós não somos uma coisa, porque nós somos uma consciência.
O MUNDO não é um conjunto de coisas e fatos estudados pelas ciências segundo relações causais e funcionais. Além do mundo como conjunto racional de fatos científicos existe o mundo como lugar em que vivemos, onde vivemos com os outros e rodeados pelas coisas. Um mundo qualitativo de cores, sons, odores, tessituras, figuras, fisionomias, obstáculos, caminhos, lembranças, um mundo afetivo, um mundo com os outros, um mundo de conflito, de luta, de esperança, de paz. Nós somos, dizia Merleau Ponty, seres temporais, ou seja, nós nascemos e temos consciência do nascimento e da morte. Ou seja, nós temos a memória do passado, a esperança do futuro, nós somos seres que fazem a história e sofrem os efeitos da história. Nós somos tempo. O tempo existe, porque nós existimos.
Nós somos seres espaciais. Para nós o mundo é feito de lugares. Perto, longe, o caminho, a mata, a cidade, o campo, o mar, a montanha, o céu, a terra. Esse mundo espacial é feito de dimensões – o grande, o pequeno, o maior, o menor. Ele é feito de qualidades - cores, sabores, tessituras, odores, sons.
O que é o nosso corpo? A física dirá que ele é um agregado de átomos, uma certa massa e energia que funciona de acordo com as leis gerais da natureza. A química acrescentará que ele é feito de moléculas de água, oxigênio, carbono, enzimas e proteínas, funcionando como qualquer outro corpo químico. A biologia dirá que é um organismo vivo, um indivíduo, membro de uma espécie, anima, mamífero, vertebrado, bípede, capaz de adaptar-se ao meio ambiente por operações e funções internas, dotado de um código genético hereditário e que se reproduz sexualmente. A psicologia acrescentará que é um feixe de carne, músculos, ossos que formam aparelhos receptores de estímulos e emissores de respostas por meio dos quais apresenta comportamentos observáveis.

Estas respostas por meio das quais o nosso corpo aparece dizem que nosso corpo é uma coisa entre coisas. Uma máquina, um autômato, cujas operações são observáveis direta ou indiretamente podendo ser examinada em seus mínimos detalhes nos laboratórios, classificado e conhecido. Mas é isso um corpo que é nosso. O que é o meu corpo? Meu corpo é um ser visível, no meio de outros seres visíveis. Mas tem a peculiaridade de ser um visível vidente, eu vejo, além de ser vista. Mas, não só isso. Eu posso me ver! Ou seja, eu sou visível para mim mesma e eu posso me ver vendo. Há uma interioridade na visão. Meu corpo é um ser táctil, como os outros corpos. Pode ser tocado, mas ele também tem o poder de tocar, ele é tocante, mas ele é capaz de tocar-se. O tato é uma operação que o corpo pode realizar sobre si mesmo. Meu corpo é sonoro como os cristais e os metais. Podendo ser ouvido, mas ele também tem o poder de ouvir. Mais do que isso, ele pode fazer se ouvir e ele pode ouvir-se quando ele emiti sons. Eu me ouço falando e ouço quem me fala. Eu sou, portanto, sonora para mim mesmo. Meu corpo é móvel entre as coisas móveis, ele é dotado do poder de mover, ele é um movente. Mas ele é um móvel movente que tem o poder de Se mover ao mover. Portanto, ele é móvel e movente para si próprio. Meu corpo não é uma coisa, não é uma máquina, ele não é um feixe de ossos, músculos e sangue, nem uma rede de causas e efeitos, ele não é um receptáculo para uma alma ou para uma consciência. O meu corpo é um sensível que é sensível para si mesmo. O meu corpo é o meu modo fundamental de ser no mundo. Meu corpo... quando minha mão direita toca a minha mão esquerda, o que ocorre aqui é um mistério, é um enigma,(...). E eu não sei mais qual mão toca e qual mão é tocada. O meu corpo é uma reflexão reversível nele mesmo. Isso é ser um corpo! Ora, o meu corpo estende a mão e toca a mão do outro, vê um outro olhar, percebe uma fisionomia, escuta uma outra voz, eu sei que diante de mim está um corpo que é do meu outro. Um outro humano que é habitado por uma consciência como eu. E eu sei, por que ele me fala, e como eu, seu corpo produz palavras, produz sentido. Nossos corpos formam a intercorporeidade, porque eles são habitados por uma consciência encarnada. Porque há uma consciência encarnada, nós formamos uma intersubjetividade. Enlaçado no tecido do visível, meu corpo continua a se ver, atado no tecido do tangível ele continua a se tocar, movido no tecido do movimento ele não cessa de se mover. Sentindo-se sentir, o corpo realiza algo que a tradição filosófica sempre considerou privilégio exclusivo da consciência – O meu corpo reflexiona! Na tradição filosófica a reflexão sempre foi o apanágio, o diferenciador da alma com relação ao corpo, da consciência com relação ao corpo e ao mundo. Quando nós tomamos o corpo dessa maneira como a fenomenologia de Merleau-Ponty toma nos vemos aqui que a primeira reflexão não é realizada pela consciência, a primeira reflexão é realizada pelo corpo. A consciência aprende com o corpo a refletir. Massa sensível e sensorial segregada na massa de um mundo sensorial o nosso corpo é misterioso. E esse mistério corporal que é atestado pela experiência criadora dos artistas. A criação é a experiência de uma diferenciação, onde uma separação no interior da indivisão. Por exemplo, a experiência criadora do pintor e do escultor, é uma experiência que se efetua naquele momento no qual um visível, o corpo do pintor, o corpo do escultor, se faz vidente - ele vê - sem sair da visibilidade, e um vidente se faz visível: o quadro ou a escultura, sem sair da visibilidade. A experiência do escritor e do poeta é um momento no qual um falante - o corpo do poeta e do escritor - se faz dizível sem abandonar a linguagem e um dizível - o poema o livro - se faz falante sem sair da linguagem. O corpo é, e é isso que a experiência artística mostra, essa capacidade de produzir uma diferenciação no interior de um mundo indiviso. Onde eu não preciso me separar do mundo para me relacionar com ele através da obra de arte. Mas é no interior do mundo sensível, do mundo sensorial, esse mundo espacial e temporal que a obra de arte é produzida, o que que ela é, ela é uma diferença no interior deste todo que nos habitamos. É isso Ser Espacial e Ser Temporal.
“Qual a utilidade, para que filosofia?”
Entrevista Marilena Chauí
(http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/entrevista-marilena-chaui)

CULT – Quando as pessoas perguntam “qual a utilidade, para que filosofia?”, deixam entrever uma concepção exclusivamente instrumental do conhecimento, concepção esta que é desmentida pela própria história da filosofia. Parece que a filosofia, ao contrário da matemática e da biologia, precisa continuamente legitimar seu direito à existência. Apesar disso, existiria uma dimensão instrumental, “funcional”, da especulação filosófica, que justificaria sua implantação curricular no ensino médio? De que maneira a filosofia pode hoje fornecer respostas concretas para o enfrentamento de problemas sociais urgentes?
MC – É conhecido o ditado: “A filosofia é uma ciência com a qual e sem a qual o mundo permanece tal e qual”. Ou seja, não serve para coisa nenhuma. O “para quê?” indica que tendemos a considerar o conhecimento de um ponto de vista instrumental como um meio e não como um fim e, como não se vê qual a instrumentalidade da filosofia, decreta-se sua inutilidade. Certa vez, perguntaram a um filósofo: para que filosofia? Ele respondeu: para não darmos nosso assentimento às coisas sem maiores considerações. Ou seja, a atitude filosófica se inicia quando desconfiamos da veracidade ou do valor de nossas crenças cotidianas, desconfiança que surge, sobretudo, no momento em que nossas crenças, nossas ideias, nossos valores parecem contradizer-se uns aos outros. A filosofia é uma interrogação sobre o sentido e o valor do conhecimento e da ação, uma atitude crítica com relação ao que nos é dado imediatamente em nossa vida cotidiana, um trabalho do pensamento para pensar-se a si mesmo e da ação para compreender-se a si mesma.
Por isso, vou dividir minha resposta em duas partes. Pelo que eu disse, é óbvio que não penso que o estudo da filosofia no ensino médio deva ser tomado como algo “funcional”, uma vez que a noção de funcionalidade implica, por um lado, a adequação a algo já dado e, de outro, o instrumento que melhora a operação disso que já está dado. Esses dois aspectos da funcionalidade contrariam o núcleo do ensino da filosofia, qual seja: o desenvolvimento da capacidade crítica e o não-conformismo com o que está dado. Ou seja, a funcionalidade faz supor que o mundo dado, a sociedade dada, a cultura dada são naturais e que seus problemas são desajustes de um funcionamento que precisa ser consertado por alguns ajustes pontuais. Mas a filosofia leva o estudante a indagar, antes de mais nada, se o dado é “natural” (o famoso “é assim mesmo”) ou se foi instituído pela ação humana, e se os problemas não exigiriam uma reflexão sobre sua gênese, suas causas, em vez de um ajuste.
Passo, então, à segunda parte de minha resposta. O que caracteriza a sociedade contemporânea, sob os efeitos do neoliberalismo, é a desigualdade num patamar jamais visto, dando origem à violência generalizada: não apenas o estímulo ao estado de guerra permanente entre nações, mas também a chamada guerra civil tácita entre os diferentes grupos sociais de uma mesma nação, além do individualismo exacerbado ou da competição mortal na busca do “sucesso”. Também caracteriza a sociedade contemporânea, sob os efeitos das tecnologias de informação, a fragmentação do espaço e do tempo, isto é, o espaço e o tempo são a tela (do computador, da televisão, do celular), tela sem profundidade, que reduz o espaço ao “aqui” e o tempo ao “agora”; todas as experiências são vividas como efêmeras e fugazes, sem passado e sem futuro. Essas características da sociedade contemporânea colocam questões que, além de políticas e econômicas, são filosóficas: a violência abre a interrogação sobre a ética e a política; a fragmentação do espaço e do tempo abre a interrogação sobre o sentido das ciências, das técnicas, das artes e da história; o privilégio da imagem (que é sempre instantânea e imediata) abre a interrogação sobre o sentido da cultura, isto é, da ordem simbólica da linguagem e do trabalho, que é uma ordem de mediações e de capacidade humana para lidar com o ausente e o possível. Certamente há como interessar os alunos por essas questões. Vale a pena levá-los a interrogações que lhes permitam uma primeira compreensão crítica das condições efetivas de suas próprias vidas.
TRECHO DE ENTREVISTA: RODA VIVA (SOBRE A VERDADE) Marilena Chauí- (3/5/1999)
Paulo Markun: Agora, no ponto de vista do público em geral, das pessoas em geral, no nosso cotidiano, a verdade é uma coisa, mais ou menos, como um quadro na parede, quer dizer, nunca sai de lá.  Está sempre ali.  A verdade é imutável, a verdade é eterna, a verdade é permanente.  Na filosofia, não é assim?

Marilena Chauí: Não, eu acho que nem mesmo para nós na vida cotidiana. Eu acho que nem na filosofia, nem na vida cotidiana. Há um tipo de verdade, que, essa sim é imutável, ela está lá para sempre e qualquer transformação nela significa catástrofe, que é a verdade religiosa, se a verdade religiosa é revelada e se eu tiver fé e aceitar a revelação, essa verdade é imutável.  Mas as outras verdades, não. As pessoas têm consciência não só de que elas são capazes de abandonar coisas que elas tinham por verdadeiras e pensar de uma maneira diferente, como elas são capazes de aceitar conflitos entre concepções que se propõem a dizer a verdade.  Então, se nós considerarmos que a verdade é um trabalho do pensamento, que a verdade é um esforço de questionamento, que a verdade é uma maneira de interrogar o mundo, nós mesmos, nós temos trilhas verdadeiras, mas nós não temos verdades estabelecidas, como conteúdos eternos, a menos que sejam realidades religiosas. 

domingo, 2 de março de 2014