“Qual a utilidade, para que filosofia?”
Entrevista Marilena Chauí
(http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/entrevista-marilena-chaui)
CULT – Quando as pessoas perguntam “qual a
utilidade, para que filosofia?”, deixam entrever uma concepção exclusivamente
instrumental do conhecimento, concepção esta que é desmentida pela própria
história da filosofia. Parece que a filosofia, ao contrário da matemática e da
biologia, precisa continuamente legitimar seu direito à existência. Apesar
disso, existiria uma dimensão instrumental, “funcional”, da especulação
filosófica, que justificaria sua implantação curricular no ensino médio? De que
maneira a filosofia pode hoje fornecer respostas concretas para o enfrentamento
de problemas sociais urgentes?
MC – É conhecido o ditado: “A filosofia é uma
ciência com a qual e sem a qual o mundo permanece tal e qual”. Ou seja, não
serve para coisa nenhuma. O “para quê?” indica que tendemos a considerar o
conhecimento de um ponto de vista instrumental como um meio e não como um fim
e, como não se vê qual a instrumentalidade da filosofia, decreta-se sua
inutilidade. Certa vez, perguntaram a um filósofo: para que filosofia? Ele
respondeu: para não darmos nosso assentimento às coisas sem maiores
considerações. Ou seja, a atitude filosófica se inicia quando desconfiamos da
veracidade ou do valor de nossas crenças cotidianas, desconfiança que surge,
sobretudo, no momento em que nossas crenças, nossas ideias, nossos valores
parecem contradizer-se uns aos outros. A filosofia é uma interrogação sobre o
sentido e o valor do conhecimento e da ação, uma atitude crítica com relação ao
que nos é dado imediatamente em nossa vida cotidiana, um trabalho do pensamento
para pensar-se a si mesmo e da ação para compreender-se a si mesma.
Por isso, vou dividir minha resposta em
duas partes. Pelo que eu disse, é óbvio que não penso que o estudo da filosofia
no ensino médio deva ser tomado como algo “funcional”, uma vez que a noção de
funcionalidade implica, por um lado, a adequação a algo já dado e, de outro, o
instrumento que melhora a operação disso que já está dado. Esses dois aspectos
da funcionalidade contrariam o núcleo do ensino da filosofia, qual seja: o
desenvolvimento da capacidade crítica e o não-conformismo com o que está dado.
Ou seja, a funcionalidade faz supor que o mundo dado, a sociedade dada, a
cultura dada são naturais e que seus problemas são desajustes de um
funcionamento que precisa ser consertado por alguns ajustes pontuais. Mas a
filosofia leva o estudante a indagar, antes de mais nada, se o dado é “natural”
(o famoso “é assim mesmo”) ou se foi instituído pela ação humana, e se os
problemas não exigiriam uma reflexão sobre sua gênese, suas causas, em vez de
um ajuste.
Passo, então, à segunda parte de minha
resposta. O que caracteriza a sociedade contemporânea, sob os efeitos do
neoliberalismo, é a desigualdade num patamar jamais visto, dando origem à
violência generalizada: não apenas o estímulo ao estado de guerra permanente
entre nações, mas também a chamada guerra civil tácita entre os diferentes
grupos sociais de uma mesma nação, além do individualismo exacerbado ou da
competição mortal na busca do “sucesso”. Também caracteriza a sociedade
contemporânea, sob os efeitos das tecnologias de informação, a fragmentação do
espaço e do tempo, isto é, o espaço e o tempo são a tela (do computador, da
televisão, do celular), tela sem profundidade, que reduz o espaço ao “aqui” e o
tempo ao “agora”; todas as experiências são vividas como efêmeras e fugazes,
sem passado e sem futuro. Essas características da sociedade contemporânea
colocam questões que, além de políticas e econômicas, são filosóficas: a
violência abre a interrogação sobre a ética e a política; a fragmentação do
espaço e do tempo abre a interrogação sobre o sentido das ciências, das
técnicas, das artes e da história; o privilégio da imagem (que é sempre
instantânea e imediata) abre a interrogação sobre o sentido da cultura, isto é,
da ordem simbólica da linguagem e do trabalho, que é uma ordem de mediações e
de capacidade humana para lidar com o ausente e o possível. Certamente há como
interessar os alunos por essas questões. Vale a pena levá-los a interrogações
que lhes permitam uma primeira compreensão crítica das condições efetivas de
suas próprias vidas.
TRECHO DE ENTREVISTA: RODA VIVA (SOBRE A VERDADE) Marilena Chauí- (3/5/1999)
Paulo Markun: Agora, no ponto de vista do público em geral, das
pessoas em geral, no nosso cotidiano, a verdade é uma coisa, mais ou
menos, como um quadro na parede, quer dizer, nunca sai de lá. Está sempre
ali. A verdade é imutável, a verdade é eterna, a verdade é
permanente. Na filosofia, não é assim?
Marilena Chauí: Não, eu acho que nem mesmo para nós na vida cotidiana. Eu acho que
nem na filosofia, nem na vida cotidiana. Há um tipo de verdade, que, essa
sim é imutável, ela está lá para sempre e qualquer transformação nela significa
catástrofe, que é a verdade religiosa, se a verdade religiosa é revelada e
se eu tiver fé e aceitar a revelação, essa verdade é imutável. Mas as
outras verdades, não. As pessoas têm consciência não só de que elas são capazes
de abandonar coisas que elas tinham por verdadeiras e pensar de uma maneira
diferente, como elas são capazes de aceitar conflitos entre concepções que se
propõem a dizer a verdade. Então, se nós considerarmos que a verdade é um
trabalho do pensamento, que a verdade é um esforço de questionamento, que a
verdade é uma maneira de interrogar o mundo, nós mesmos, nós temos trilhas
verdadeiras, mas nós não temos verdades estabelecidas, como conteúdos eternos,
a menos que sejam realidades religiosas.
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