sábado, 12 de abril de 2014

“Qual a utilidade, para que filosofia?”
Entrevista Marilena Chauí
(http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/entrevista-marilena-chaui)

CULT – Quando as pessoas perguntam “qual a utilidade, para que filosofia?”, deixam entrever uma concepção exclusivamente instrumental do conhecimento, concepção esta que é desmentida pela própria história da filosofia. Parece que a filosofia, ao contrário da matemática e da biologia, precisa continuamente legitimar seu direito à existência. Apesar disso, existiria uma dimensão instrumental, “funcional”, da especulação filosófica, que justificaria sua implantação curricular no ensino médio? De que maneira a filosofia pode hoje fornecer respostas concretas para o enfrentamento de problemas sociais urgentes?
MC – É conhecido o ditado: “A filosofia é uma ciência com a qual e sem a qual o mundo permanece tal e qual”. Ou seja, não serve para coisa nenhuma. O “para quê?” indica que tendemos a considerar o conhecimento de um ponto de vista instrumental como um meio e não como um fim e, como não se vê qual a instrumentalidade da filosofia, decreta-se sua inutilidade. Certa vez, perguntaram a um filósofo: para que filosofia? Ele respondeu: para não darmos nosso assentimento às coisas sem maiores considerações. Ou seja, a atitude filosófica se inicia quando desconfiamos da veracidade ou do valor de nossas crenças cotidianas, desconfiança que surge, sobretudo, no momento em que nossas crenças, nossas ideias, nossos valores parecem contradizer-se uns aos outros. A filosofia é uma interrogação sobre o sentido e o valor do conhecimento e da ação, uma atitude crítica com relação ao que nos é dado imediatamente em nossa vida cotidiana, um trabalho do pensamento para pensar-se a si mesmo e da ação para compreender-se a si mesma.
Por isso, vou dividir minha resposta em duas partes. Pelo que eu disse, é óbvio que não penso que o estudo da filosofia no ensino médio deva ser tomado como algo “funcional”, uma vez que a noção de funcionalidade implica, por um lado, a adequação a algo já dado e, de outro, o instrumento que melhora a operação disso que já está dado. Esses dois aspectos da funcionalidade contrariam o núcleo do ensino da filosofia, qual seja: o desenvolvimento da capacidade crítica e o não-conformismo com o que está dado. Ou seja, a funcionalidade faz supor que o mundo dado, a sociedade dada, a cultura dada são naturais e que seus problemas são desajustes de um funcionamento que precisa ser consertado por alguns ajustes pontuais. Mas a filosofia leva o estudante a indagar, antes de mais nada, se o dado é “natural” (o famoso “é assim mesmo”) ou se foi instituído pela ação humana, e se os problemas não exigiriam uma reflexão sobre sua gênese, suas causas, em vez de um ajuste.
Passo, então, à segunda parte de minha resposta. O que caracteriza a sociedade contemporânea, sob os efeitos do neoliberalismo, é a desigualdade num patamar jamais visto, dando origem à violência generalizada: não apenas o estímulo ao estado de guerra permanente entre nações, mas também a chamada guerra civil tácita entre os diferentes grupos sociais de uma mesma nação, além do individualismo exacerbado ou da competição mortal na busca do “sucesso”. Também caracteriza a sociedade contemporânea, sob os efeitos das tecnologias de informação, a fragmentação do espaço e do tempo, isto é, o espaço e o tempo são a tela (do computador, da televisão, do celular), tela sem profundidade, que reduz o espaço ao “aqui” e o tempo ao “agora”; todas as experiências são vividas como efêmeras e fugazes, sem passado e sem futuro. Essas características da sociedade contemporânea colocam questões que, além de políticas e econômicas, são filosóficas: a violência abre a interrogação sobre a ética e a política; a fragmentação do espaço e do tempo abre a interrogação sobre o sentido das ciências, das técnicas, das artes e da história; o privilégio da imagem (que é sempre instantânea e imediata) abre a interrogação sobre o sentido da cultura, isto é, da ordem simbólica da linguagem e do trabalho, que é uma ordem de mediações e de capacidade humana para lidar com o ausente e o possível. Certamente há como interessar os alunos por essas questões. Vale a pena levá-los a interrogações que lhes permitam uma primeira compreensão crítica das condições efetivas de suas próprias vidas.
TRECHO DE ENTREVISTA: RODA VIVA (SOBRE A VERDADE) Marilena Chauí- (3/5/1999)
Paulo Markun: Agora, no ponto de vista do público em geral, das pessoas em geral, no nosso cotidiano, a verdade é uma coisa, mais ou menos, como um quadro na parede, quer dizer, nunca sai de lá.  Está sempre ali.  A verdade é imutável, a verdade é eterna, a verdade é permanente.  Na filosofia, não é assim?

Marilena Chauí: Não, eu acho que nem mesmo para nós na vida cotidiana. Eu acho que nem na filosofia, nem na vida cotidiana. Há um tipo de verdade, que, essa sim é imutável, ela está lá para sempre e qualquer transformação nela significa catástrofe, que é a verdade religiosa, se a verdade religiosa é revelada e se eu tiver fé e aceitar a revelação, essa verdade é imutável.  Mas as outras verdades, não. As pessoas têm consciência não só de que elas são capazes de abandonar coisas que elas tinham por verdadeiras e pensar de uma maneira diferente, como elas são capazes de aceitar conflitos entre concepções que se propõem a dizer a verdade.  Então, se nós considerarmos que a verdade é um trabalho do pensamento, que a verdade é um esforço de questionamento, que a verdade é uma maneira de interrogar o mundo, nós mesmos, nós temos trilhas verdadeiras, mas nós não temos verdades estabelecidas, como conteúdos eternos, a menos que sejam realidades religiosas. 

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