sábado, 12 de abril de 2014

Marilena Chauí - Café Filosófico (2 /09/ 2010) O toque de Merleau-Ponty/O Corpo Humano/ Transcrição de Leeward Wang
Merleau Ponty escreveu: Nós não somos uma consciência cognitiva pura. Nós somos uma consciência encarnada num corpo. O nosso Corpo não é um objeto tal como descrito pelas ciências. Mas é um corpo humano, isto é, habitado e animado por uma consciência. Nós não somos pensamento puro, porque nós somos um corpo. Mas nós não somos uma coisa, porque nós somos uma consciência.
O MUNDO não é um conjunto de coisas e fatos estudados pelas ciências segundo relações causais e funcionais. Além do mundo como conjunto racional de fatos científicos existe o mundo como lugar em que vivemos, onde vivemos com os outros e rodeados pelas coisas. Um mundo qualitativo de cores, sons, odores, tessituras, figuras, fisionomias, obstáculos, caminhos, lembranças, um mundo afetivo, um mundo com os outros, um mundo de conflito, de luta, de esperança, de paz. Nós somos, dizia Merleau Ponty, seres temporais, ou seja, nós nascemos e temos consciência do nascimento e da morte. Ou seja, nós temos a memória do passado, a esperança do futuro, nós somos seres que fazem a história e sofrem os efeitos da história. Nós somos tempo. O tempo existe, porque nós existimos.
Nós somos seres espaciais. Para nós o mundo é feito de lugares. Perto, longe, o caminho, a mata, a cidade, o campo, o mar, a montanha, o céu, a terra. Esse mundo espacial é feito de dimensões – o grande, o pequeno, o maior, o menor. Ele é feito de qualidades - cores, sabores, tessituras, odores, sons.
O que é o nosso corpo? A física dirá que ele é um agregado de átomos, uma certa massa e energia que funciona de acordo com as leis gerais da natureza. A química acrescentará que ele é feito de moléculas de água, oxigênio, carbono, enzimas e proteínas, funcionando como qualquer outro corpo químico. A biologia dirá que é um organismo vivo, um indivíduo, membro de uma espécie, anima, mamífero, vertebrado, bípede, capaz de adaptar-se ao meio ambiente por operações e funções internas, dotado de um código genético hereditário e que se reproduz sexualmente. A psicologia acrescentará que é um feixe de carne, músculos, ossos que formam aparelhos receptores de estímulos e emissores de respostas por meio dos quais apresenta comportamentos observáveis.

Estas respostas por meio das quais o nosso corpo aparece dizem que nosso corpo é uma coisa entre coisas. Uma máquina, um autômato, cujas operações são observáveis direta ou indiretamente podendo ser examinada em seus mínimos detalhes nos laboratórios, classificado e conhecido. Mas é isso um corpo que é nosso. O que é o meu corpo? Meu corpo é um ser visível, no meio de outros seres visíveis. Mas tem a peculiaridade de ser um visível vidente, eu vejo, além de ser vista. Mas, não só isso. Eu posso me ver! Ou seja, eu sou visível para mim mesma e eu posso me ver vendo. Há uma interioridade na visão. Meu corpo é um ser táctil, como os outros corpos. Pode ser tocado, mas ele também tem o poder de tocar, ele é tocante, mas ele é capaz de tocar-se. O tato é uma operação que o corpo pode realizar sobre si mesmo. Meu corpo é sonoro como os cristais e os metais. Podendo ser ouvido, mas ele também tem o poder de ouvir. Mais do que isso, ele pode fazer se ouvir e ele pode ouvir-se quando ele emiti sons. Eu me ouço falando e ouço quem me fala. Eu sou, portanto, sonora para mim mesmo. Meu corpo é móvel entre as coisas móveis, ele é dotado do poder de mover, ele é um movente. Mas ele é um móvel movente que tem o poder de Se mover ao mover. Portanto, ele é móvel e movente para si próprio. Meu corpo não é uma coisa, não é uma máquina, ele não é um feixe de ossos, músculos e sangue, nem uma rede de causas e efeitos, ele não é um receptáculo para uma alma ou para uma consciência. O meu corpo é um sensível que é sensível para si mesmo. O meu corpo é o meu modo fundamental de ser no mundo. Meu corpo... quando minha mão direita toca a minha mão esquerda, o que ocorre aqui é um mistério, é um enigma,(...). E eu não sei mais qual mão toca e qual mão é tocada. O meu corpo é uma reflexão reversível nele mesmo. Isso é ser um corpo! Ora, o meu corpo estende a mão e toca a mão do outro, vê um outro olhar, percebe uma fisionomia, escuta uma outra voz, eu sei que diante de mim está um corpo que é do meu outro. Um outro humano que é habitado por uma consciência como eu. E eu sei, por que ele me fala, e como eu, seu corpo produz palavras, produz sentido. Nossos corpos formam a intercorporeidade, porque eles são habitados por uma consciência encarnada. Porque há uma consciência encarnada, nós formamos uma intersubjetividade. Enlaçado no tecido do visível, meu corpo continua a se ver, atado no tecido do tangível ele continua a se tocar, movido no tecido do movimento ele não cessa de se mover. Sentindo-se sentir, o corpo realiza algo que a tradição filosófica sempre considerou privilégio exclusivo da consciência – O meu corpo reflexiona! Na tradição filosófica a reflexão sempre foi o apanágio, o diferenciador da alma com relação ao corpo, da consciência com relação ao corpo e ao mundo. Quando nós tomamos o corpo dessa maneira como a fenomenologia de Merleau-Ponty toma nos vemos aqui que a primeira reflexão não é realizada pela consciência, a primeira reflexão é realizada pelo corpo. A consciência aprende com o corpo a refletir. Massa sensível e sensorial segregada na massa de um mundo sensorial o nosso corpo é misterioso. E esse mistério corporal que é atestado pela experiência criadora dos artistas. A criação é a experiência de uma diferenciação, onde uma separação no interior da indivisão. Por exemplo, a experiência criadora do pintor e do escultor, é uma experiência que se efetua naquele momento no qual um visível, o corpo do pintor, o corpo do escultor, se faz vidente - ele vê - sem sair da visibilidade, e um vidente se faz visível: o quadro ou a escultura, sem sair da visibilidade. A experiência do escritor e do poeta é um momento no qual um falante - o corpo do poeta e do escritor - se faz dizível sem abandonar a linguagem e um dizível - o poema o livro - se faz falante sem sair da linguagem. O corpo é, e é isso que a experiência artística mostra, essa capacidade de produzir uma diferenciação no interior de um mundo indiviso. Onde eu não preciso me separar do mundo para me relacionar com ele através da obra de arte. Mas é no interior do mundo sensível, do mundo sensorial, esse mundo espacial e temporal que a obra de arte é produzida, o que que ela é, ela é uma diferença no interior deste todo que nos habitamos. É isso Ser Espacial e Ser Temporal.
“Qual a utilidade, para que filosofia?”
Entrevista Marilena Chauí
(http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/entrevista-marilena-chaui)

CULT – Quando as pessoas perguntam “qual a utilidade, para que filosofia?”, deixam entrever uma concepção exclusivamente instrumental do conhecimento, concepção esta que é desmentida pela própria história da filosofia. Parece que a filosofia, ao contrário da matemática e da biologia, precisa continuamente legitimar seu direito à existência. Apesar disso, existiria uma dimensão instrumental, “funcional”, da especulação filosófica, que justificaria sua implantação curricular no ensino médio? De que maneira a filosofia pode hoje fornecer respostas concretas para o enfrentamento de problemas sociais urgentes?
MC – É conhecido o ditado: “A filosofia é uma ciência com a qual e sem a qual o mundo permanece tal e qual”. Ou seja, não serve para coisa nenhuma. O “para quê?” indica que tendemos a considerar o conhecimento de um ponto de vista instrumental como um meio e não como um fim e, como não se vê qual a instrumentalidade da filosofia, decreta-se sua inutilidade. Certa vez, perguntaram a um filósofo: para que filosofia? Ele respondeu: para não darmos nosso assentimento às coisas sem maiores considerações. Ou seja, a atitude filosófica se inicia quando desconfiamos da veracidade ou do valor de nossas crenças cotidianas, desconfiança que surge, sobretudo, no momento em que nossas crenças, nossas ideias, nossos valores parecem contradizer-se uns aos outros. A filosofia é uma interrogação sobre o sentido e o valor do conhecimento e da ação, uma atitude crítica com relação ao que nos é dado imediatamente em nossa vida cotidiana, um trabalho do pensamento para pensar-se a si mesmo e da ação para compreender-se a si mesma.
Por isso, vou dividir minha resposta em duas partes. Pelo que eu disse, é óbvio que não penso que o estudo da filosofia no ensino médio deva ser tomado como algo “funcional”, uma vez que a noção de funcionalidade implica, por um lado, a adequação a algo já dado e, de outro, o instrumento que melhora a operação disso que já está dado. Esses dois aspectos da funcionalidade contrariam o núcleo do ensino da filosofia, qual seja: o desenvolvimento da capacidade crítica e o não-conformismo com o que está dado. Ou seja, a funcionalidade faz supor que o mundo dado, a sociedade dada, a cultura dada são naturais e que seus problemas são desajustes de um funcionamento que precisa ser consertado por alguns ajustes pontuais. Mas a filosofia leva o estudante a indagar, antes de mais nada, se o dado é “natural” (o famoso “é assim mesmo”) ou se foi instituído pela ação humana, e se os problemas não exigiriam uma reflexão sobre sua gênese, suas causas, em vez de um ajuste.
Passo, então, à segunda parte de minha resposta. O que caracteriza a sociedade contemporânea, sob os efeitos do neoliberalismo, é a desigualdade num patamar jamais visto, dando origem à violência generalizada: não apenas o estímulo ao estado de guerra permanente entre nações, mas também a chamada guerra civil tácita entre os diferentes grupos sociais de uma mesma nação, além do individualismo exacerbado ou da competição mortal na busca do “sucesso”. Também caracteriza a sociedade contemporânea, sob os efeitos das tecnologias de informação, a fragmentação do espaço e do tempo, isto é, o espaço e o tempo são a tela (do computador, da televisão, do celular), tela sem profundidade, que reduz o espaço ao “aqui” e o tempo ao “agora”; todas as experiências são vividas como efêmeras e fugazes, sem passado e sem futuro. Essas características da sociedade contemporânea colocam questões que, além de políticas e econômicas, são filosóficas: a violência abre a interrogação sobre a ética e a política; a fragmentação do espaço e do tempo abre a interrogação sobre o sentido das ciências, das técnicas, das artes e da história; o privilégio da imagem (que é sempre instantânea e imediata) abre a interrogação sobre o sentido da cultura, isto é, da ordem simbólica da linguagem e do trabalho, que é uma ordem de mediações e de capacidade humana para lidar com o ausente e o possível. Certamente há como interessar os alunos por essas questões. Vale a pena levá-los a interrogações que lhes permitam uma primeira compreensão crítica das condições efetivas de suas próprias vidas.
TRECHO DE ENTREVISTA: RODA VIVA (SOBRE A VERDADE) Marilena Chauí- (3/5/1999)
Paulo Markun: Agora, no ponto de vista do público em geral, das pessoas em geral, no nosso cotidiano, a verdade é uma coisa, mais ou menos, como um quadro na parede, quer dizer, nunca sai de lá.  Está sempre ali.  A verdade é imutável, a verdade é eterna, a verdade é permanente.  Na filosofia, não é assim?

Marilena Chauí: Não, eu acho que nem mesmo para nós na vida cotidiana. Eu acho que nem na filosofia, nem na vida cotidiana. Há um tipo de verdade, que, essa sim é imutável, ela está lá para sempre e qualquer transformação nela significa catástrofe, que é a verdade religiosa, se a verdade religiosa é revelada e se eu tiver fé e aceitar a revelação, essa verdade é imutável.  Mas as outras verdades, não. As pessoas têm consciência não só de que elas são capazes de abandonar coisas que elas tinham por verdadeiras e pensar de uma maneira diferente, como elas são capazes de aceitar conflitos entre concepções que se propõem a dizer a verdade.  Então, se nós considerarmos que a verdade é um trabalho do pensamento, que a verdade é um esforço de questionamento, que a verdade é uma maneira de interrogar o mundo, nós mesmos, nós temos trilhas verdadeiras, mas nós não temos verdades estabelecidas, como conteúdos eternos, a menos que sejam realidades religiosas.